A Lei da Palmada

Há uma série de opiniões sobre a denominada Lei das Palmadas, ou Lei do Menino Bernardo, aprovada na semana passada. As divergências se apresentam por motivos variados, sendo indispensável que se faça, a respeito do assunto, uma série de ponderações, visando a um aprofundamento, a esta altura, mais do que conveniente.

Dois prismas, pelo menos, precisam ser levados em consideração, o primeiro deles relativo aos aspectos sociais ou políticos da iniciativa do Congresso Nacional quanto à regulação da matéria,  e o segundo, naturalmente, voltado aos fundamentos e reflexos da norma aprovada na área jurídica.

Vem de longa data a preocupação de instituições respeitáveis, como é o caso do UNICEF- Brasil com a violência contra a infância, cujos índices mais estridentes apontam o ambiente familiar como o de sua maior incidência, já que nele  tecem-se relações guarnecidas por uma aura de intimidade, que obstaculiza, com efeito, investigações e responsabilização de pais ou familiares que se valem corriqueiramente de castigos físicos, violência psíquica etc. como instrumentos educacionais.

Estudos desenvolvidos por órgãos respeitáveis, tais como a SDH ou o IPEA, apresentam dados sempre alarmantes a respeito do nível de exposição à violência a que ficam submetidas crianças e jovens no ambiente familiar, notadamente por propensões atávicas da família ao emprego da punição corporal a filhos etc., podendo-se reconhecer, realmente, a existência de uma certa cultura da violência enraizada na sociedade brasileira ( cf. Juliana Sada e Yuri Kiddo –  http://www.promenino.org.br/Noticias/Reportagens/pouco-denunciada-violencia-contra-criancas-e-adolescentes-e-enraizada-na-sociedade-brasileira).

A situação não pode ser ignorada, tendo sido, inclusive, objeto de estudos aprofundados da OMS, que concluiu pela relevância da violência doméstica como causa de distúrbios ao nível da saúde de crianças, havendo sérios estudos acadêmicos que, para além disso, visam a destacar os nefandos reflexos do uso de violência – ainda que por meio dos chamados castigos moderados – na educação de filhos ( cf. Geraldo Lucchese – Castigos Corporais em Crianças , bd.camara.gov.br\castigoscorporais_lucchese.pdf), mesmo porque redundam no reforço a uma convivência social contaminada pela violência.

O problema, malgrado a certificação científica de tantos estudos, portanto, se situa no plano cultural, sobretudo porque instituições educacionais do passado tinham por método pedagógico – por influência religiosa inclusive – a violência física e psíquica, o que foi tingindo o espírito de gerações passadas e presentes de um elevado grau de tolerância em relação a isso, utilizando-a, igualmente, no ambiente doméstico, como se sabe.

Provém daí, por óbvio, toda a resistência de setores da sociedade ao teor da matéria legislativa em discussão, sob o temor, naturalmente infundado, de se desarmar a família de meios adequados à educação de seus filhos.

Assim sendo, importa dizer que o próprio cenário atual, em que se destaca a sociedade da comunicação, ou da hiperinformação, a educação de filhos há de ser plasmada por meios que privilegiem o diálogo, a racionalidade, até como meio mais adequado, ou indicado, para sua preparação para a convivência em um mundo em progresso constante. É nesse clima, aliás, que se percebe uma justa intolerância a toda forma de violência, por sua inutilidade como elemento de construção e modelagem dos cidadãos desse século.

Foi essa compreensão o móvel do projeto de lei, nascido de esforços e estudos de há décadas pelo LACRI – Laboratório de Estudos da Criança ( cf. http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/111/artigo233967-1.asp), sobretudo por sua absoluta vinculação ao propósito maior do sistema de proteção à infância, desde o enunciado compromisso do constituinte com a proteção integral com prioridade absoluta ( CF/88, art.227), que repele naturalmente qualquer alternativa de formação ou educação por meio do emprego de qualquer tipo de violência.

Desse ponto de vista, aliás, vale lembrar que o dispositivo constitucional que introduziu a doutrina da proteção integral no sistema jurídico brasileiro, ou seja, o art. 227 da Constituição Federal, faz evidente referência ao compromisso da ordem jurídica nacional para com a incolumidade física e psíquica de crianças e adolescentes, justamente por evidenciar a necessidade de o Estado, a Família e a Sociedade agirem permanentemente no sentido de lhes garantir imunidade frente a toda forma de negligência, discriminação e, sobretudo, violência.

Antes mesmo, aliás, de que se cogitasse de um Projeto de Lei específico contra a palmada, ou ainda antes da viabilização de sua apreciação pelo Congresso Nacional, civilistas de alto coturno já vinham situando a questão no plano doutrinário, apontando, por exemplo, a incongruência do legislador do Código Civil de 2002 ao desconsiderar  ao texto constitucional, até por ter mantido injustificadamente o instituto do Poder Familiar praticamente intocado, quando o sistema de proteção à infância e juventude requeria substanciosa alteração.

Paulo Lôbo (Familias, Saraiva), por exemplo, registrava há algum tempo o seguinte: “Como resquício do antigo pátrio-poder, persiste na doutrina e na legislação a tolerância ao que se denomina castigo moderado dos filhos. O Código Civil, ao incluir a vedação ao castigo imoderado admite implicitamente o castigo moderado. O castigo pode ser físico, psíquico, ou de privação de situações de prazer. Sob o ponto de vista estritamente constitucional, não há fundamento jurídico para o castigo físico ou psíquico, ainda que moderado, pois não deixa de constituir violência à integridade física do filho, que é direito fundamental inviolável da pessoa humana, também oponível aos pais. O art. 227 da Constituição determina que é dever da família colocar o filho ( criança ou adolescente) a salvo de qualquer violência.”

Essa percepção, importa frisar, não difere muito daquela alimentada por Pietro Perlingieri ( Perfis do Direito Civil, Ed. Renovar), pois este desde sempre afirmava não haver mais lugar, nas relações familiares para o exercício de um poder familiar como antes, com sujeição do filho aos pais de modo quase absoluto – fonte dos tais castigos moderados -, de tal modo que salienta o seguinte: “O esquema do pátrio poder visto como poder-sujeição está em crise, porque não há dúvidas de que em uma concepção de igualdade, participativa e democrática da comunidade familiar, a sujeição, entendida tradicionalmente , não pode continuar a realizar o mesmo papel. A relação educativa não é mais entre um sujeito e um objeto, mas uma correlação de pessoas, onde não é possível conceber um sujeito subjugado a outro.”

O caráter dialógico do exercício do poder familiar, a propósito, parece ser um reflexo inexorável da disciplina constitucional da família emergida do texto constitucional, o que impede, realmente, o emprego de qualquer meio violento como alternativa pedagógica, pois também Gustavo Tepedino, (A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares, Temas de Direito Civil, Vol. 1) com o mesmo espírito, detecta que os dispositivos dos arts. 226 a 230 da Constituição acolhe a concepção funcional de família, à medida que a tutela constitucional se destina a garantir a dignidade de seus membros. Por isso mesmo, aliás, diz ele: “Igualmente no que diz respeito ao pátrio poder, exercido pelo marido com a colaboração da mulher, hoje denominado de poder familiar pelo Código Civil de 2002 ( art. 1630) e exercido conjuntamente pelos cônjuges ou companheiros ( art. 1631), conferia-se ao pai excessivos poderes, a determinar processo educacional extremamente autoritário. Ao filho cabia simplesmente se sujeitar ao poder paterno que se expressava, não raro, em punições severas e inclusive castigos corporais. Somente o Estauto da Criança e do Adolescente ( Lei nº 8069/90) é que na esteira de valores constitucionais, mudou este estado de coisas, transformando o filho ( antes mero objeto) em protagonista do próprio processo educacional.’

Essas visões doutrinárias, então, revelam que o texto constitucional, aliado à legislação estatutária, criou uma atmosfera jurídica a partir da qual se tornou condenável qualquer método pedagógico violento  na educação dos filhos, tenha ele a intensidade ou repercussões que tiver, leve ou não, moderado ou não.

Dentro dessa perspectiva, por óbvio, é que a aprovação pelo Congresso Nacional do PL 58/2014 (Senado Federal) não burlou, antes ajustou, a legislação vigente aos termos do sistema de proteção à infância e juventude, e particularmente às diretrizes emanadas diretamente da Constituição Federal ( art. 227), disciplinando no plano da legislação ordinária as necessárias condições do exercício do poder familiar.

Por essa razão, aliás, é que ao incidir sobre o dispositivo do art.18 do Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei Federal nº 8069/90), justamente aquele que trata do direito fundamental à dignidade da criança e do adolescente, o Projeto de Lei aprovado o altera para acrescentar “…o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina , educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada…”, por reconhecer, como inevitável, que práticas dessa natureza já não se assentam mais à ordem jurídica.

É relevante, ainda, a preocupação do legislador, ao modificar o art. 18 do ECA, em alinhá-lo às disposições do art. 129, criando medidas aplicáveis a pais ou responsáveis com objetivos nítidos de apoio e retificação do comportamento violador por meio do esclarecimento, da reeducação junto a órgãos próprios, medidas salutares e reedificadoras de condutas ainda sintonizadas com métodos pedagógicos de caráter violento.

Finalmente, convém registrar que a legislação por entrar em vigor impõe igualmente ao Estado a urgência em desenvolver políticas de orientação e esclarecimento às famílias no tocante à urgência em se buscar métodos educativos que dispensem a violência, o que retrata, pelo menos, uma excelente possibilidade de divulgação de outros meios educacionais, esclarecendo-se também famílias, em tudo carentes, da necessidade de informação nesse sentido.

Por isso mesmo, é muito bem vinda a lei da palmada.

 

 

 

 

 

 

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